terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Comer mal é um vício ou temos escolha?


Um novo estudo sugere que a gordura cria dependência como cocaína e heroína. O guru da alimentação saudável dá 20 lições para evitar ser refém do lixo alimentar

Francine Lima (texto) e Sattu (ilustrações)

Quando alguém menciona drogas viciantes, o que vem à mente são substâncias ilegais como cocaína, crack ou heroína. Pelo que se sabe, não há níveis seguros para o consumo dessas drogas. A orientação é ficar longe delas. Desde a semana passada, a ciência médica acrescentou à lista de produtos capazes de provocar dependência algo assustadoramente próximo de nós: a comida gordurosa. Um estudo com ratos publicado na revista Nature Neuroscience sugere que o consumo de alimentos ricos em gordura leva ao desenvolvimento de um tipo de dependência parecida com a que afeta os viciados em cocaína ou heroína. O cérebro dos ratos superalimentados, assim como nos dependentes químicos, apresenta uma queda acentuada nos níveis de substâncias responsáveis pelas sensações de prazer, conhecidas como receptores de dopamina. Com menos receptores, o organismo precisa de quantidades de gordura cada vez maiores para que o cérebro registre satisfação. É o mesmo mecanismo cerebral do vício humano em drogas. A pesquisa, feita apenas em ratos, confirmou em laboratório pela primeira vez aquilo de que muitos especialistas já suspeitavam: certos tipos de comida viciam.

“Espero que este estudo mude a maneira como muitos pensam sobre comida”, diz Paul Johnson, coautor do estudo realizado no Scripp Research Institute, da Flórida. “Ele demonstra como a oferta de comida pode produzir superalimentação e obesidade.”

Ao vincular dependência química à alimentação, a pesquisa divulgada na semana passada lança uma série de novas questões – e reanima velhos fantasmas – no debate sobre comida. Levada às últimas consequências, ela pode até mesmo sugerir que os consumidores são manipulados pela indústria do fast-food do mesmo modo como jovens são aliciados por traficantes na porta das escolas. Trata-se do tipo de estudo que traz alento àqueles que acreditam que somos reféns de uma indústria alimentar inescrupulosa, incapaz de manifestar uma preocupação genuína com a saúde – e afirmam que o cidadão precisa de regras quase policiais para controlar a comida, assim como precisa da polícia antidrogas.

A diretora do Nida (o instituto do governo americano contra o abuso de drogas), Nora Volkow, chegou a afirmar que o novo estudo ajudará a aplicar o conhecimento adquirido no combate à dependência química ao tratamento da obesidade. Depois de proibir o fumo e limitar o consumo e a propaganda de álcool, a brigada dos militantes pelo controle alimentar passa, portanto, a dispor de mais argumentos para defender restrições à batata frita ou ao churrasco. “É improvável que proíbam a picanha como fizeram com a cocaína”, diz o neurocientista Jorge Moll, coordenador do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino, do Rio de Janeiro. “Mas o experimento com ratos sugere que deixar de comer compulsivamente não depende só de força de vontade.”

Afinal, o que há de fantasia e de realidade nessa visão? Estaríamos indefesos diante da gordura como diante do tabaco – e seu consumo deveria ser restrito? Até que ponto a indústria alimentar tem tanto poder de controlar o que come o consumidor? Não é possível a cada um de nós, de acordo com nosso livre-arbítrio, escolher uma alimentação saudável e viver comendo bem?

Para responder a essas questões, é preciso analisar de perto as evidências científicas. Os próprios experimentos com ratos sobre o vício oferecem evidências ambivalentes. Em seu estudo, Johnson e seu colega, Paul Kenny, dividiram os animais em três grupos. O primeiro grupo foi alimentado com ração comum. O segundo teve acesso restrito a comida gordurosa, comparável à que encontramos numa lanchonete. O terceiro teve acesso quase ilimitado. Os ratos do último grupo se esbaldaram numa comilança compulsiva. Ao final de 40 dias, estavam mais gordos e, além do maior peso, foi observada alteração nos centros cerebrais de prazer similar à de ratos drogados com substâncias como cocaína e heroína.


Convivemos com substâncias potencialmente perigosas o tempo inteiro – álcool, tabaco, remédios e uma infinidade de substâncias ilegais –, sem que nos tornemos necessariamente reféns delas. Com a comida não é diferente: tudo depende das escolhas individuais e das circunstâncias. Há diferentes predisposições ao vício, diz o psiquiatra Marcelo Niel, da Universidade Federal de São Paulo. Alguns podem usar drogas recreativamente sem se viciar, outros ficam totalmente dependentes. Essa diferença depende de componentes genéticos e ambientais, ainda não completamente esclarecidos. O comportamento compulsivo seria uma válvula de escape para ativar centros de prazer. “Em alguns pacientes que comem compulsivamente, se tiramos a comida, eles podem desenvolver sintomas psiquiátricos mais pronunciados”, diz Niel.

Há, portanto, uma dose de oportunismo nas comparações entre gordura e drogas e na defesa de restrições draconianas à indústria alimentar. O ativista americano Michael Pollan ficou conhecido com o livro O dilema do onívoro como um dos maiores críticos da forma como é feita a comida que chega a nossa mesa. Pollan e o italiano Carlo Petrini, fundador do movimento Slow Food (o oposto do fast-food), afirmam que a indústria não para de nos empurrar porcarias goela abaixo. Mas mesmo Pollan acredita que, para combater a obesidade e a má alimentação, o melhor caminho é respeitar o livre-arbítrio. Em seu novo livro, Food rules (Regras da alimentação), lançado nos Estados Unidos no final de 2009, ele sugere que retomemos o controle de nossa vida alimentar por meio da cozinha tradicional, que nos foi legada por nossos pais e avós

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